O funk e a juventude pobre carioca.

O funk, assim como a axé-music, o rap e a chamada música sertaneja, sofre os efeitos de uma espécie perversa de exclusão estético-ideológica do que se chama de MPB

É sempre assim: quando alguma manifestação cultural criada pela juventude pobre rompe as barreiras sociogeográficas e passa a aparecer com destaque em meios de comunicação, a primeira reação é de alarme, choque e desconfiança. Assim aconteceu com o punk paulistano no final da década de 70, assim também foi recebido o rap da periferia de São Paulo ali pelo meio da década de 80 e não é de se espantar que tenha voltado a ocorrer no final de 2000 com o funk carioca. Seus músicos e compositores vêm dos morros e favelas do Rio de Janeiro, seu público – que nas letras é caracterizado como composto por popozudas, tigrões, tchutchucas – é original também. Enquanto as músicas com batida monocórdica e refrões repetitivos ("tá dominado/tá tudo dominado") saíam de quase todas as rádios, TVs e barraquinhas de CDs piratas espalhadas pelas cidades brasileiras, uma onda de horror moralista seguiu-se à invasão do funk.

De um lado, apontava-se (no passado, porque afinal, já nem se fala tanto assim de funk carioca) a "má qualidade" das músicas e letras. Vejamos um exemplo em texto publicado na Folha de S. Paulo que sintetiza um tipo de proposição que se tornou bastante comum sobre o funk carioca e, de certa forma, é extensível para outros fenômenos culturais criados por jovens de classes populares: "Sociologicamente, o movimento do funk carioca tem lá sua validade. ((…) Musicalmente, esse estilo nada mais é do que um monumento à repetição. Das batidas ao chauvinismo das letras, os freqüentadores de bailes da equipe Furacão 2000 não ouvem nada de novo há décadas". Em vez de relativizar, como aparentemente é a intenção do autor, o paternalismo e a condescendência contidos no "sociologicamente válido" evidenciam, na verdade, um enorme desinteresse, o que se confirma pela associação óbvia que o autor faz entre uma descrição, digamos, objetiva sobre as condições em que é produzido o funk carioca e os adjetivos que usa a seguir para (des)qualificá-la: "Como, em sua origem, esse tipo de música era produzida por rapazes pobres com uma bateria eletrônica (rudimentar) na mão e um arsenal reduzido de idéias na cabeça, a criatividade foi a primeira vítima na gênese do funk carioca" (grifos meus)1. É de se perguntar qual é de fato a vítima neste caso: será que é o que o autor chama de criatividade? Ou as vítimas reais são esses tais "rapazes pobres" aos quais o jornalista se refere e aos quais se concede serem capazes de produzir fenômenos sociologicamente válidos (o que quer que isso signifique), mas cujas realizações estéticas levariam a priori a marca da precariedade? Ainda, o que é exatamente esse tal de "novo", sem o qual seria impossível a criatividade?

Aos muxoxos dos moralistas estéticos juntaram-se as exclamações da patrulha dos costumes. "Denúncias" escabrosas que davam conta de "orgias" e sexo desregrado nos bailes funk apareceram na imprensa e várias autoridades apressaram-se em tecer considerações alarmadas2. As tais denúncias versavam sobre menores fazendo sexo, sexo sem proteção, gravidez precoce, nada muito diferente do que acontece todos os dias em outros grupos juvenis e não apenas entre as classes populares. Ao mesmo tempo que os meios de comunicação abriam espaço para que os dedos da moralidade apontassem o escândalo, a mesma mídia estava explorando o sensacionalismo sexual que se criou em torno do funk, inventando novos objetos de babação masculina como a "Enfermeira do Funk" e exibindo meninas em trajes sumários executando coreografias explicitamente sexualizadas. Novamente, nenhuma novidade – antes das garotas do funk, tivemos as bundas do Tchan e as mascaradas de Luciano Huck. A única diferença, na verdade, foi a magra vitória feminista que o Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo conseguiu quando, preocupado com o aumento de casos de assédio sexual e com a erotização da imagem das enfermeiras profissionais, anunciou que ia entrar com uma ação contra o empresário Alexandre Frota e assim impediu que a "Enfermeira do Funk" fosse exibida em capas de revista e na televisão (o empresário, entretanto, não perdeu tempo e transformou a "Enfermeira" em a "Proibida do Funk" e também lançou uma nova personagem, a "Ninja").

Se o alarido é por conta do que se chama de "má qualidade" de música e letra ou por conta do moralismo hipócrita, tanto faz. O fato é que, antes mesmo de se entender o funk carioca, ele foi combatido, rotulado e (agora no meio de 2000) já jogado para escanteio. O que não significa que ele tenha desaparecido e nem que não seja interessante e importante tentar entender alguns dos aspectos envolvidos em sua origem e seu impacto na cultura brasileira.

Um pouco de genealogia
O que é, afinal, o funk carioca e o que ele fez para merecer tanta maledicência? Para começo de conversa, carioca é, mas não é exatamente funk. Foi porque nasceu nos bailes funk das favelas e subúrbios do Rio de Janeiro que esse estilo acabou, por extensão, adotando o nome de funk. Há parentesco com funk, termo que denomina as "variações anárquicas e polirrítmicas da música soul"3 e define um estilo musical com forte marcação rítmica (groove) de baixo e bateria, uma vez que o funk é, digamos, também matriz do miami bass, música de base eletrônica com sonoridades graves sobre a qual grava-se o vocal, geralmente de letras com referência à diversão e sexo e principal influência do funk carioca. Indo mais para trás na genealogia4, uma vez que o miami bass é uma derivação do eletrofunk, do qual também saiu o primeiro rap nova-iorquino (Afrika Bambaataa, Grandmaster Flash), pode-se dizer que o funk carioca, portanto, é uma espécie de primo debochado e desaforado do rap de grupos como os Racionais MCC’s. Nessa salada toda de termos, o importante é reter que todos esses gêneros citados – rap, electrofunk, miami bass – são musicalmente minimalistas por excelência e baseiam-se em batidas eletrônicas pré-gravadas ou sampleadas.

Já os bailes funk têm raízes mais fundas na paisagem cultural do Rio de Janeiro5. Surgidos nos anos 60, os primeiros bailes exclusivamente de som mecânico eram promovidos pelo lendário DJ Big Boy, realizados no Canecão, na Zona Sul do Rio de Janeiro, e tocavam rock e soul. Nos anos 70, quando os bailes passaram a ser levados também para os subúrbios, ocorreu uma separação socioétnica-musical: os bailes do subúrbio especializaram-se em ritmos negros (funk, soul) e tornaram-se bailes black, os da Zona Sul continuavam tocando rock. Nesse caldo de cultura foi que nasceu o Black Rio, um dos primeiros movimentos de afirmação cultural da juventude negra, que não só deu origem à importante Banda Black Rio (cujo suíngue funk foi "descoberto" por Gilberto Gil em seu disco Refavela, de 1974), como abrigou outros compositores importantes do soul-funk brasileiro (Cassiano, Hyldon e Gerson King Combo). Os bailes black também deram guarida para músicos como Tim Maia e Jorge Ben que, embora de inserção mais antiga na música brasileira, amargaram, durante os anos 70, uma espécie de ostracismo.

A primeira grande equipe de funk, a Furacão 2000, foi criada em 1973 e está até hoje em atividade. Outras, como a Pipoo’s, Espião Shock de Monstro e New Funk, também surgiram do mesmo caldo cultural – a população jovem das favelas, de morros e subúrbios cariocas – com a mesma função, promover bailes semanais que reúnem milhares de jovens e muitas vezes são a única alternativa de diversão e de expressão cultural de algum tipo em áreas carentes e dominadas pela marginalidade. Grupos de jovens da mesma comunidade ou bairro que vão juntos ao baile são chamados de "bondes", as garotas são "popozudas", "cachorras" e "preparadas". Enquanto o hip hop paulistano (e, em certa medida, aquele que vem do Distrito Federal também) é marcado por um discurso mais politizado, as "galeras" do funk escolhem temas mais diretamente conectados com as suas possibilidades imediatas de diversão: sexo, futebol e os próprios bailes.

Se em São Paulo, onde também existiam bailes black – os mais famosos eram promovidos pelo Chic Show –, as preferências tendiam para o rap mais combativo do Public Enemy, no Rio o que mais pegou mesmo foi o miami bass. Marlboro, um dos principais DJs dos bailes funk nas década de 80 e 90, afirma que esse ritmo, do qual foi um dos introdutores, fez sucesso antes aqui do que nos EUA.6 No final dos anos 80, foi lançado o primeiro disco com composições brasileiras, "Funk Brasil Volume 1", mas foi na década de 90, que o mundo funk carioca passou a ter mais visibilidade. Músicos como Fernanda Abreu e Lulu Santos incorporaram a batida dos morros e subúrbios em seus discos; com a crescente popularidade de músicas de base eletrônica, casas noturnas da Zona Sul passaram a tocar também charm (versão mais romântica) e funk carioca até o primeiro estouro popular de uma vertente mais melódica e lenta, o chamado funk melody, nas vozes de Claudinho e Buchecha ("o que eu quero é ser feliz/andar tranqüilamente na favela onde eu nasci"). O grito de guerra dos bailes funk, "u-tererê", migrou para estádios de futebol e shows e começou a ser ouvido em todo o Brasil. Não foi só em cadernos de cultura que o que acontecia nos bailes passou a aparecer: as páginas policiais noticiavam, em tom alarmado, as brigas entre galeras e mesmo os "arrastões" que assustaram o Rio de Janeiro eram atribuídos aos mesmos jovens que dançavam, ora, funk, nas noites de sábado.

A bola da vez
No ano passado, o "fenômeno" explodiu, numa bem construída operação de marketing encetada sobretudo pela gravadora Sony. De certa forma, a grande sacada foi vender o funk carioca como alternativa para a axé music, já um tanto desgastada pela superexposição. Em comum com o axé, o funk carioca tinha o potencial para oferecer uma música com letras de duplo sentido e inúmeras alusões mais e menos explícitas à sexualidade, uma batida marcada fácil e coreografias próprias já desenvolvidas nos bailes, prontas para serem estilizadas em apresentações na televisão. O primeiro indício de que a aposta daria pé foi o estouro de "Popozuda", do grupo DeFalla, que disseminou a figura da "popozuda", a garota gostosa e pronta para o sexo, da mesma forma que as loiras e morenas da axé music em suas danças da garrafa e em sua disposição para, bem, segurar o "tchan". Esse funk carioca, de certa forma "acanalhado" e reformatado para os mesmos programas de televisão que vêm vendendo axé há uns 5 anos, tornou-se ainda mais visível com o lançamento do CD do Bonde do Tigrão, grupo cuja imagem foi cuidadosamente rearrumada de forma a parecerem menos negros e menos periféricos; portanto menos ameaçadores: os meninos ganharam roupas e cabelos, por exemplo, mais parecidos com os dos grupos de pagode do que com a imagem dos grupos de hip hop. Deu certo. O funk carioca tornou-se o ritmo do verão 2001, ganhou bailes mauricinhos em São Paulo e chegou ao carnaval baiano, principal vitrine de ritmos pop-popularescos.

Afinal, qual é o escândalo?
Até aqui, nada demais. O funk carioca é só mais uma "bola da vez" no processo de manufatura de fenômenos musicais que se estabeleceu plenamente nos anos 90 e, grosso modo, poderia ser descrito pela seguinte fórmula: detecta-se a existência de um estilo musical popular, reembala-se com tintas pop e popularescas para consumo menos regional, tanto no sentido geográfico quanto no social, e vende-se em larga escala. A indústria fonográfica brasileira, dominada pelas grandes multinacionais do entretenimento (Sony, Universal, EMI-Warner), percebeu em algum momento entre os anos 80 e 90 duas características importantes do mercado brasileiro: a) o Brasil tem uma tradição e diversidade musical que não dá para ser desprezada; portanto, vender música aqui significa vender sobretudo música brasileira e b) o fosso que separava aquilo que era do agrado da classe média do gosto das classes populares diminuiu.

O que aconteceu com o funk carioca, em certa medida, já havia acontecido com vários outros gêneros nos anos 90. Foi assim que a música do carnaval baiano (originalmente, uma forma neo-afro de samba e reggae que, uma vez diluída, tornou-se a axé music) passou a ser produto o ano inteiro, que o sertanejo travestido de country saiu do âmbito da população rural e tornou-se a música romântica por excelência no lugar vago por um Roberto Carlos cada vez mais exaurido, que o samba fundo-de-quintal, uma espécie de samba mais doméstico e livre das armadilhas do samba-enredo, largou sua roupagem malandra carioca e ganhou ares corno-arrivistas8 transformando-se no pagode paulistano mauricinho, que o forró hoje em dia ganhou uma vertente chamada de "universitária", em que basicamente um bom sanfoneiro nordestino toca com garotos de classe média para jovens com nostalgia de suas viagens a Porto Seguroo…

Em comum, além de um certo padrão nas manipulações comerciais e industriais promovidas pelas gravadoras, esses gêneros sofrem também dos efeitos de uma espécie perversa de exclusão estético-ideológica do que se chama de MPB. Ao contrário do que sugeriria a simples e desapaixonada decodificação da sigla – lembrando, música popular brasileira –, MPB não é o nome de toda a música não-erudita produzida em território nacional, mas um termo cunhado entre o final dos anos 60 e início dos 70 para designar a música de alguma forma filiada às revoluções estéticas da bossa nova, seja em sua vertente nacional-popular (música de protesto), seja em seu formato pop-anárquico (tropicalistas), seja no seu lado neotradicionalista (representado por compositores como Paulinho da Viola, Chico Buarque). Ou seja, um gênero específico, mais ou menos circunscrito a uma única geração, classe social e tipo de formação cultural, arroga-se o direito de chamar-se simultaneamente de popular e brasileiro, a despeito da variedade de músicas que poderiam ser consideradas brasileiras, dado que são criadas em território nacional, e da enorme diversidade étnica e cultural de seu povo.

Assim, firmou-se uma espécie de cisão dentro da música feita no Brasil: de um lado, uma música admitida como a música popular e brasileira tal como a classe média intelectualizada entendia tanto o "popular" quanto o "brasileiro"; de outro, todas as outras músicas tão ou mais populares e brasileiras quanto a MPB. Evidentemente que não se pode atribuir essa manobra a um calculismo maquiavélico por parte de compositores, críticos, público, pensadores e intelectuais da MPB, mas o fato é que este pensamento ditou por muito tempo e continua a nortear, de certa forma, as regras do bom gosto e do admissível como "popular" e "brasileiro" em música brasileira.

Como se vê, essa não é uma disputa qualquer na cultura brasileira. Até mesmo a contracorrente dessa espécie de pensamento único emepebístico, representada sobretudo pelo ultranacionalista José Ramos Tinhorão, tem o mesmo impulso de tentar tutelar o que deve ser o "popular" e o "brasileiro". Sobre axé, o crítico escreveria o seguinte: "As demais criações classificadas como ‘brasileirass’ surgidas pelo correr da década de 1980 – principalmente durante o carnaval baiano – viriam comprovar apenas a extensão da penetração que os alcançavam entre as próprias camadas populares". O tom é obviamente de lamentação por um gosto popular perdido, uma vez que este foi contaminado pelo que o autor chama de "ritmos de massa internacionais" e, portanto, já não pode mais aspirar.

O que parece espantoso é o fato de não ter ocorrido ainda aos árbitros do "gosto popular" a constatação de que o "povo brasileiro" não é exatamente o que se imaginava que ele era e muito menos o que os intelectuais e pensadores à esquerda, à direita e ao centro gostariam que ele fosse. Nos dois casos, ou seja, tanto no pensamento em torno da MPB quanto naquele que a critica, parece que, muito mais forte do que o interesse real pela cultura que os vários povos brasileiros possam estar produzindo, é a vontade de normatizar, regular e decidir o que deve ou não ser a cultura do povo brasileiro.

Na música dos anos 90, o povo brasileiro (o real e não o imaginário) vem sistematicamente subvertendo tudo ou quase tudo o que se esperava dele – e os tubarões das gravadoras, os apresentadores maliciosos da TV têm sido muito mais rápidos em perceber isso do que os intelectuais. Antes de classificar, julgar e condenar (ou até mesmo festejar, o que dá mais ou menos na mesma), o funk carioca e todos os escândalos que se criaram em torno dele são só mais um capítulo dessa história.

*Bia Abramo é jornalista.

Notas

1. FRANCO, "O relaxo é pai do funk", artigo publicado na "Revista da Folha" , em 25/02/2001.

2. DIMENSTEIN, Gilberto. "Dia Internacional da ‘Popozudaa’", artigo publicado na Folha de S. Paulo em 11/03/2001.

3. Shuker, Roy. Vocabulário do Pop (editora Hedra, 1999)

4. A idéia dessa genealogia foi tomada de empréstimo do jornalista e escritor Alex Antunes

5. VIANNA, Hermano. O Mundo Funk Carioca (Jorge Zahar Editor, 1997)

6. MENA, Fernanda. "Veteranos revelam história do funk carioca", entrevista publicada no "Folhateen", em 26/02/2001

7. "Música: Explosão Nacional", revista Veja, 20/03/1996

8. Termo tomado de empréstimo de Alex Antunes