Dançando Funk Letra Cidade de Deus

O livro "Lendo Música", da Publifolha, traz diversos ensaios que interpretam e comentam canções populares brasileiras, abordando desde o samba-exaltação na era do getulismo ("Aquarela do Brasil", de Ary Barroso) até às novas misturas eletroacústicas de Marcelo D2 ("Em Busca da Batida Perfeita").

Um dos ensaios publicados é sobre o sucesso do funk carioca "Cidade de Deus", de Cidinho e Doca. O texto questiona se os leitores já teriam ouvido esta música e ressalta que esta canção é justamente destinada a quem nunca ouviu este estilo musical ou pôs os pés em uma favela.

O ensaio é de autoria do antropólogo Hermano Vianna, autor de "O Mundo Funk Carioca" (Jorge Zahar, 1988) e "O Mistério do Samba" (Jorge Zahar/EditoraUFRJ, 1995). Vianna também é redator-final do programa Central da Periferia (TV Globo) e coordenador do site Overmundo.

O autor ainda traz um pouco da história do funk no Brasil, que até 1989 era uma cópia da fórmula inventada pelo Miami Bass, estilo bem eletrônico que o hip hop adquiriu quando chegou na Flórida, Estados Unidos. O livro também conta que o primeiro sucesso de funk, produzido no Rio e cantado em português, foi "Melô da Mulher Feia" (lançado no LP Funk Brasil, em 1989).
Leia abaixo um trecho do ensaio sobre "Cidade de Deus".

C-I-D-A-D-E-D-E-D-E-U-S
"C-I-D-A-D-E-D-E-D-E-U-S" começa com o refrão, repetido inúmeras vezes no decorrer da canção, como que para marcar/ martelar sua mensagem no ouvido do tal doutor. O refrão já é internamente repetitivo, cantando duas vezes os mesmos versos(que são acompanhados pelo tamborzão, o que cria um ambiente sonoro mais carnavalesco do que nas outras partes da música): "C I D A D E D E D E U S [cantado soletrando]/ e vê se não esquece de Deus/ Cidade de Deus [sem soletrar] / C I D A D E D E D E U S [soletrando novamente]/ e vê se não esquece".

Depois do refrão, os cantores descrevem a imagem de quem mora na Cidade de Deus segundo o "doutor", o sangue bom, a mídia ou quem não mora por lá, mas já apresentando suas respostas para as acusações e, em troca, acusando a discriminação de ser uma forma de violência: "dizem que nós somos violentos/ mas desse jeito eu não agüento/ dizem que lá falta educação/ mas nós não somos burros não/ dizem que não temos competência/ mas isso sim que é violência".

E emenda com uma crítica feita ao funk: "que só sabemos fazer refrão". No próximo verso o discurso muda de tom, e a auto-imagem raivosa e resoluta (mas de alguma maneira e em alguns momentos submissa, pois é dirigida a quem socialmente tem o poder para decidir os destinos da favela) ganha destaque a partir de um "se liga sangue bom" (que significa: "preste atenção, meu ouvinte de fora" - ouvinte interpelado como "sangue-bom", que pode ser também sinônimo de "gente boa", mas aqui nitidamente de classe social superior).

Cidinho e Doca dizem então como é na realidade a CDD, e dão ordens para o destinatário da mensagem: "nós temos escola/ nós temos respeito/ se quer falar de nós, vê se fala direito". É então que reaparece o doutor, numa declaração de obediência à ordem vigente, em que a falta de "documentos" (sobretudo a carteirade trabalho) é usada pela polícia como desculpa para prisões arbitrárias dos pobres: "estou documentado, doutor/ cidadão brasileiro, e tenho o meu valor".

Quase toda a letra parece ser enunciada em nome de um coletivo (todos os moradores da CDD, ou de todos os funkeiros da CDD), mas em determinados momentos fica bem pessoal, como se fosse uma autobiografia: "é/ meu pai é pedreiro/ mamãe costureira/ e eu cantando rap pra massa funkeira" (repare bem: ele "canta" rap, não diz ou recita um rap). No próximo verso, volta o coletivo, como se não houvesse fronteira entre o eu e a comunidade: "o ritmo é quente, é alucinante / êta povo valente, êta povo gigante".

Volta o refrão e logo após, o "doutor" vai ser tratado com a intimidade do pronome "tu" conjugado em modo popular, comum em todas as periferias brasileiras: "mas se tu não sabe, eu te conto/ mas eu não sei se tu está pronto/ nem tudo que falam é verdade/ queremos paz, justiça, liberdade/ quando tiver um tempo sobrando/ se liga no que estou falando/ vai lá conhecer minha cidade". Está feito o convite, e é um convite bem realista. Cidinho e Doca não vão maquiar sua cidade para receber os convidados - eles prometem alegria e sofrimento, mas sem esconder o orgulho de morar em meio a esses contrastes: "tu vai se amarrar, vai se divertir/ depois que tu entrar não vai querer sair/ vai ver alegria, vai ver sofrimento/ não escondemos nada que temos lá dentro/ porque a comunidade tem fé".

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